sábado, 10 de abril de 2010

A História de uma Estrela

A História de Uma Estrela

O dia é de festa na fazenda. O céu comanda das alturas
na sua cor mais nítida, azul-céu. O sol brilha como
pode, tal a algazarra e a folia, que não nos dá tempo de
encará-Ia de frente. O churrasco sendo assado
incendeia o quintal com sua fumaça de carne. A bebida
rola solta nesse fim de mundo onde é proibido beber
todos os dias, mas nesse dia tudo pode, é festa; o patrão
admite e libera a aguardente, e todos podem com
vontade beber mais e mais e mais ... e mais uma fazenda
o Sr. José incorpora às suas posses, que ainda
estavam em duas, com essa, três. Felicidade reina pelas
sete léguas de pasto: Viva Santa Maria! Todos gritam
urra, dão ecos ao som de acordeão, harpa e violão.
Tem doma de cavalo, ginete cai, a platéia dá risada,
ninguém se machuca, peão sabe cair macio na grama
verde. Siriri e Cururu desafiam na beirada da fogueira
quem canta melhor. De outras fazendas chegam
cavalos afoitos para disputar a carreira, trazendo peões
vestidos de festa prontos para qualquer desafio, tudo
para ganhar uma dama, e quanto maior a bravura do
peão, mais bela é a morena como prêmio. Os homens
cuidam do churrasco com seus facões afiados, e as mulheres
da mandioca, da broa de milho, do bolo de fubá,
do bolo de arroz, do arroz-doce, da canjica, do pãozinho
recheado de galinha, do revirado, da paçoca com
bananinha.
Moças bonitas dançam soltas um rasqueado quente,
que faz qualquer peão ou patrão virar a cabeça e sair dando
tiro por aí, tamanho prazer e dor de não ter o que seu
corpo viril e másculo quer. Tantos gritos, tantos tiros,
tantas risadas loucas, tantas danças soltas, tanta gente
bonita e forte que tudo o mais pode acontecer naquele
lugar abençoado pelos santos e pela natureza. Fatos podem
virar casos famosos, contados por toda a redondeza
da Nhecolândia como causos, mas nesse bendito dia de
Santa Maria tudo é real e de fato pode ter acontecido.
As horas vão ganhando o dia, sonhos impossíveis,
desejos contidos vão aflorando na textura fina da pele.
Proprietários desses mesmos sonhos vão, com o passar
do tempo, trazendo-os à tona, domando-os, tornandoos
reais.
Com o sol se desmanchando no horizonte , carregando
a tarde embriagada e morna, bocejam as primeiras
estrelas introduzindo a noite, com a volta das curicacas e
dos tordos para o terreiro, procurando abrigo e parceiro
para mais uma noite de orgia. Com a harmonia de toda
essa natureza tão esperta e cotidiana, e sem cabeça para
analisar o que é bom ou não:Tudo se casa, todos os desejos
como que em um passe de mágica vão sendo um a um realizados;
o tempo dá tempo para tudo no deslanchar do dia.
Maria, a filha do patrão de Santa Maria, ainda
menina, corre solta, potranca nova, que necessita ser
amansada pela mata desconhecida, mas que já é sua.
Está feliz por essa imensidão pertencer a seu pai, o
homem que mais ama nessa vida. Correndo a favor do
vento, de encontro à tarde que vai vermelha iluminada
pelo brilho de prata lá em cima, sentindo as cócegas
que o capim verde acaricia, avista de l.onge o pai e corre
em direção a ele como uma nuvem que deixou de
morar no céu e que agora corre, dona e senhora da terra.
Joga-se sorridente nos braços fortes do pai que a
carrega no ar como uma pena. Maria sorri feliz, acariciada,
começa a rodar o moinho, rodopiam assim os
dois: José Maria Céu Mato Capim e Estrelas.
O pai tomado por um imenso prazer deita-a na
terra - nas suas terras - como quem meio tonto da
farra, beija-a possuído por um desejo profundo, quer
ter Maria. Maria tem medo, pede por socorro. É tal a
força que o homem tem, que a impede de qualquer
reação. Ele nem sequer a escuta, apenas a possui, até o
fim, até não existir Maria nem José, só a tarde linda
que cambaleante se vai.
Maria olha a tarde sendo domada pela noite, quieta,
obediente, enquanto mãos que outrora a protegiam,
hoje percorrem seu corpo desnudando-o, sem que possa
pronunciar sequer uma palavra, ainda que essa palavra
seja: Pai. ..
Já não existem pessoas, tudo se dilui, transcende,
voa pelos ares. Só uma estrela Maria consegue pegar
nesse princípio de noite e, agarrada a ela, passa a morar
no céu. Daí em diante nada mais faz contato com a
civilização, com o que foi estabelecido ou criado pelo
homem: o ego vira cinzas, o pecado dá 1ugar ao prazer,
a luta e dor antecedem ao amor, e o amor vira uma
sensação vazia de querer; nunca poder ter.
E os dois ... José e Maria se levantam da terra depois
de um descanso eterno, para nunca mais se olharem.
Para tudo virar passado morto em memória
esquecida ... E Maria aterriza lentamente nas nuvens
agarrada a sua estrela para não mais perdê-Ia.
E José ... E agora? Passado o porre, a cabeça pesa,
como pesa a cabeça de todo homem nessa terra.
Termina a festa. Um tiro ainda foi dado no ar;
ninguém ouviu. O patrão de Santa Maria fecha as portas
da fazenda e decreta o fim da festa. E foi essa a última
vez que Pai e Filha se viram, para nunca mais se
encararem de frente.
Fechadas as portas, dadas as costas, Maria vive
anos e anos, agarrada a sua estrela; presente enviado
pelos Deuses, por essa tarde morna, em uma festa na
fazenda.
E hoje ... graças à lua, ao sol que se põe todos os
dias, à grama que roça e é verde, ao pai que abraça sem
medo, à tarde que se despede morna, às estrelas que
brilham e caem na terra, a tudo que é amor e transcende,
Maria transcendeu ... Virou uma estrela.